Judaísmo. Livro Judaísmo e
Cristianismo – As Diferenças. Por Trude Rosmarin ((1908-1989). Capítulo III.
LIVRE ARBÍTRIO X PECADO ORIGINAL. Parte III. Ao judeu é ensinado que a alma
humana é criada pura e descontaminada. A sua esperança é que, ao morrer, esteja
tão livre do pecado quanto ao nascer. O mesmo pensamento é expresso na
exortação rabínica de devolver a alma ao seu Criador no mesmo estado de pureza
que a recebeu em custódia. Obviamente, esse aspecto não dá margem a nada
semelhante ao dogma cristão do Pecado Original. O cristão busca proteção e fuga
do Pecado Original – e da pecaminosidade em geral – sob a proteção da crença na
“graça” como manifesta na vida e imolação de Jesus Cristo. Um judeu desafia o
pecado orgulhosa e desafiadoramente, fortalecido pelo compromisso Divino de que
ele mesmo pode subjugá-lo e controlá-lo. Longe de ser maldição ou falta de
sorte, o judaísmo considera a tentação do pecado como um aspecto humano
característico e precioso. Pois “não existe má inclinação nos animais”. O
impulso perverso, o qual pode e deve ser dominado, é inerente ao ser humano e acrescenta
a ele valor e dignidade, e não o afasta deles. Os rabinos interpretaram de modo
vigoroso o mandamento “E amarás teu Deus com todo o teu coração, Deuteronômio
6,5”. Como significado que se deve servir a Deus com ambos os impulsos – a
inclinação para o bem e aquela para o mal. O mesmo pensamento é expresso na
exposição midráshica da passagem “E Deus viu tudo o que tinha feito, e era
muito bom Gênesis 1,31”. A expressão “muito bom” é tida como uma alusão também
à inclinação má, pois se não fosse por aquela inclinação – em sua forma
sublimada. É claro, ninguém construiria uma casa, se casaria, teria filhos e se
engajaria em empenhos úteis. A lição a ser deduzida é que o desejo sexual e a
ambição pelo sucesso terreno não são sentimentos maus por si mesmo, mas somente
se forem gratificados promiscuamente e não estiverem sujeitos ao controle da
“inclinação pra o bem”. A literatura cristã sagrada é rica em narrações sobre
“santos” que milagrosamente derrotaram
o” diabo”. O judaísmo não reconhece poder mau independente e em oposição a
Deus. A devoção judaica, portanto, não é testada em embates com o diabo, mas
numa batalha bastante realística contra o “mau impulso”. Existem inúmeras
histórias talmúdicas sobre sábios que dominaram seus desejos pecaminosos com a
potente arma do “bom impulso”. Esses contos refletem satisfação e felicidade em
vez de resignação e mágoa. Um judeu se regozija quando pode provar seu caráter
ético na batalha sem ajuda contra as tentações do pecado. Pois sem a tentação e
sua poderosa isca, não haveria mérito algum em resistir a ela. Essa atitude é
notavelmente expressa na história talmúdica sobre o duelo do piedoso Rabi Amram
com o desejo sexual. Certa vez, sentindo-se incapaz de resistir a tentação de
uma bela mulher, o rabi procurou por
ajuda e convocou seus colegas com o seguinte apelo: “A casa de Amram está
pegando fogo”. Mas eles não poderiam apagar a chama da paixão que ameaçava
consumi-lo. Então o Rabi Amram, por conta própria, retirou o desejo pecaminoso
de seu coração e, quando se viu livre daquelas labaredas de fogo, assim se
dirigiu ao pecado: “Apesar de você ser fofo e eu carne, mesmo assim sou mais
forte do que você”. Um judeu é ensinado a se considerar sempre e cada vez mais
forte do que o pecado e do que o poder que o aproxima dele. Ele é convidado a
se vangloriar dessa força, do mesmo modo como o Rabi Amram fez. E assim, mesmo
quando sucumbe ao pecado, um judeu ainda sabe que se tentar com afinco, é capaz
de derrotar o mau impulso. Apesar de o desejo pecaminoso ser fogo, o ser humano
é mais forte que ele e capaz de extingui-lo com seu impulso ético. “Sou mais
forte do que você”. Essa é a resposta judaica pecado e, por isso, nunca
recorreram a qualquer outra arma contra a má inclinação, a não ser o bom
impulso e o poder da escolha ética. Obviamente, essa visão é bastante dinâmica,
em oposição aos princípios cristãos estáticos do “pecado original” e da
“graça”. O espírito dinâmico do judaísmo dá a incumbência aos seus seguidores
de lutar incessantemente por uma perfeição ética maior. Por meio da subjugação
do mau instinto. A perfeição almejada é incomensurável e, portanto, um judeu
deve sempre se esforçar em renovar seu empenho ético. Ele não pode relaxar e
esmorecer na escalada as alturas éticas, nem confiar num “salvador” que o
levará até elas. Ele próprio deve trilhar o difícil caminho, vagarosamente e
passo a passo. Pois, se não fosse assim, não haveria mérito na devoção e não
haveria glória e triunfo na derrota do “mau impulso”. O problema ético com o
qual o cristão fiel se confronta é mais simples e menos desafiador.
Primeiramente, ele deve acreditar em Jesus Cristo e que ele morreu devido aos
pecados da humanidade. Essa crença, e nada mais, abre os portões do Paraíso
cristão. É claro, o cristão também tem o compromisso de levar uma vida
virtuosa. Permanece o fato, entretanto, de que o cristianismo coloca a “graça”
acima da conduta e do empenho ético na busca bem-sucedida da salvação. O
cristianismo não dá valor ao estimulante desafio ético representado pelo “mau
impulso”, pois não vê o pecado como “desafio”. Mas, sim, como o inevitável
destino de cada ser humano do qual existe somente uma escapatória a “graça” da
imolação de Jesus Cristo. Os cristãos, por este motivo, as vezes acham difícil
compreender a maneira pela qual o judaísmo vê o ser humano que “se afastou do
pecado cujo sabor conhecia e subjugou seu mau impulso”. Aqui, uma vez mais, o
caráter dinâmico do progresso ético é exaltado sobre a perfeição ética
alcançada pela mera crença passiva. A característica dinâmica da ética judaica
talvez seja mais memoravelmente exaltada na vigorosa alegoria talmúdica
seguinte: “No mundo vindouro, o Santíssimo – abençoado seja – trata a má
inclinação e a aniquilará diante do justo e do perverso. Ao justo parecerá uma
poderosa montanha, mas, ao perverso, um simples fio de cabelo. Ambos se
lamentarão. O justo se lamentará e exclamará: Como conseguimos escalar uma
montanha tão alta como está? E o perverso se lamentará, dizendo: Como foi que
não pudemos dar conta de um simples fio de cabelo como esse”! Esta é, portanto,
a recompensa para a piedade e a punição para o pecado. A vitória ética do justo
é engrandecida e projetada em tal dimensão, que aqueles que a alcançam ficam
chocados com sua magnitude. A punição dos pecadores, por outro lado, consiste
na minimização do desafio no qual não lograram êxito. De modo que fiquem
perplexos de vergonha por não terem conseguido subjugar aquele “simples fio de
cabelo”. Não existe ponte que possa transpor o abismo existente entre as
doutrinas judaicas do livre arbítrio e da liberdade de escolha ética e dos
dogmas cristãos do “pecado original e da “graça”. Abraço. Davi.
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