segunda-feira, 1 de julho de 2024

LIVRE ARBÍTRIO X PECADO ORIGINAL. Parte III

 

Judaísmo. Livro Judaísmo e Cristianismo – As Diferenças. Por Trude Rosmarin ((1908-1989). Capítulo III. LIVRE ARBÍTRIO X PECADO ORIGINAL. Parte III. Ao judeu é ensinado que a alma humana é criada pura e descontaminada. A sua esperança é que, ao morrer, esteja tão livre do pecado quanto ao nascer. O mesmo pensamento é expresso na exortação rabínica de devolver a alma ao seu Criador no mesmo estado de pureza que a recebeu em custódia. Obviamente, esse aspecto não dá margem a nada semelhante ao dogma cristão do Pecado Original. O cristão busca proteção e fuga do Pecado Original – e da pecaminosidade em geral – sob a proteção da crença na “graça” como manifesta na vida e imolação de Jesus Cristo. Um judeu desafia o pecado orgulhosa e desafiadoramente, fortalecido pelo compromisso Divino de que ele mesmo pode subjugá-lo e controlá-lo. Longe de ser maldição ou falta de sorte, o judaísmo considera a tentação do pecado como um aspecto humano característico e precioso. Pois “não existe má inclinação nos animais”. O impulso perverso, o qual pode e deve ser dominado, é inerente ao ser humano e acrescenta a ele valor e dignidade, e não o afasta deles. Os rabinos interpretaram de modo vigoroso o mandamento “E amarás teu Deus com todo o teu coração, Deuteronômio 6,5”. Como significado que se deve servir a Deus com ambos os impulsos – a inclinação para o bem e aquela para o mal. O mesmo pensamento é expresso na exposição midráshica da passagem “E Deus viu tudo o que tinha feito, e era muito bom Gênesis 1,31”. A expressão “muito bom” é tida como uma alusão também à inclinação má, pois se não fosse por aquela inclinação – em sua forma sublimada. É claro, ninguém construiria uma casa, se casaria, teria filhos e se engajaria em empenhos úteis. A lição a ser deduzida é que o desejo sexual e a ambição pelo sucesso terreno não são sentimentos maus por si mesmo, mas somente se forem gratificados promiscuamente e não estiverem sujeitos ao controle da “inclinação pra o bem”. A literatura cristã sagrada é rica em narrações sobre “santos”  que milagrosamente derrotaram o” diabo”. O judaísmo não reconhece poder mau independente e em oposição a Deus. A devoção judaica, portanto, não é testada em embates com o diabo, mas numa batalha bastante realística contra o “mau impulso”. Existem inúmeras histórias talmúdicas sobre sábios que dominaram seus desejos pecaminosos com a potente arma do “bom impulso”. Esses contos refletem satisfação e felicidade em vez de resignação e mágoa. Um judeu se regozija quando pode provar seu caráter ético na batalha sem ajuda contra as tentações do pecado. Pois sem a tentação e sua poderosa isca, não haveria mérito algum em resistir a ela. Essa atitude é notavelmente expressa na história talmúdica sobre o duelo do piedoso Rabi Amram com o desejo sexual. Certa vez, sentindo-se incapaz de resistir a tentação de uma bela mulher,  o rabi procurou por ajuda e convocou seus colegas com o seguinte apelo: “A casa de Amram está pegando fogo”. Mas eles não poderiam apagar a chama da paixão que ameaçava consumi-lo. Então o Rabi Amram, por conta própria, retirou o desejo pecaminoso de seu coração e, quando se viu livre daquelas labaredas de fogo, assim se dirigiu ao pecado: “Apesar de você ser fofo e eu carne, mesmo assim sou mais forte do que você”. Um judeu é ensinado a se considerar sempre e cada vez mais forte do que o pecado e do que o poder que o aproxima dele. Ele é convidado a se vangloriar dessa força, do mesmo modo como o Rabi Amram fez. E assim, mesmo quando sucumbe ao pecado, um judeu ainda sabe que se tentar com afinco, é capaz de derrotar o mau impulso. Apesar de o desejo pecaminoso ser fogo, o ser humano é mais forte que ele e capaz de extingui-lo com seu impulso ético. “Sou mais forte do que você”. Essa é a resposta judaica pecado e, por isso, nunca recorreram a qualquer outra arma contra a má inclinação, a não ser o bom impulso e o poder da escolha ética. Obviamente, essa visão é bastante dinâmica, em oposição aos princípios cristãos estáticos do “pecado original” e da “graça”. O espírito dinâmico do judaísmo dá a incumbência aos seus seguidores de lutar incessantemente por uma perfeição ética maior. Por meio da subjugação do mau instinto. A perfeição almejada é incomensurável e, portanto, um judeu deve sempre se esforçar em renovar seu empenho ético. Ele não pode relaxar e esmorecer na escalada as alturas éticas, nem confiar num “salvador” que o levará até elas. Ele próprio deve trilhar o difícil caminho, vagarosamente e passo a passo. Pois, se não fosse assim, não haveria mérito na devoção e não haveria glória e triunfo na derrota do “mau impulso”. O problema ético com o qual o cristão fiel se confronta é mais simples e menos desafiador. Primeiramente, ele deve acreditar em Jesus Cristo e que ele morreu devido aos pecados da humanidade. Essa crença, e nada mais, abre os portões do Paraíso cristão. É claro, o cristão também tem o compromisso de levar uma vida virtuosa. Permanece o fato, entretanto, de que o cristianismo coloca a “graça” acima da conduta e do empenho ético na busca bem-sucedida da salvação. O cristianismo não dá valor ao estimulante desafio ético representado pelo “mau impulso”, pois não vê o pecado como “desafio”. Mas, sim, como o inevitável destino de cada ser humano do qual existe somente uma escapatória a “graça” da imolação de Jesus Cristo. Os cristãos, por este motivo, as vezes acham difícil compreender a maneira pela qual o judaísmo vê o ser humano que “se afastou do pecado cujo sabor conhecia e subjugou seu mau impulso”. Aqui, uma vez mais, o caráter dinâmico do progresso ético é exaltado sobre a perfeição ética alcançada pela mera crença passiva. A característica dinâmica da ética judaica talvez seja mais memoravelmente exaltada na vigorosa alegoria talmúdica seguinte: “No mundo vindouro, o Santíssimo – abençoado seja – trata a má inclinação e a aniquilará diante do justo e do perverso. Ao justo parecerá uma poderosa montanha, mas, ao perverso, um simples fio de cabelo. Ambos se lamentarão. O justo se lamentará e exclamará: Como conseguimos escalar uma montanha tão alta como está? E o perverso se lamentará, dizendo: Como foi que não pudemos dar conta de um simples fio de cabelo como esse”! Esta é, portanto, a recompensa para a piedade e a punição para o pecado. A vitória ética do justo é engrandecida e projetada em tal dimensão, que aqueles que a alcançam ficam chocados com sua magnitude. A punição dos pecadores, por outro lado, consiste na minimização do desafio no qual não lograram êxito. De modo que fiquem perplexos de vergonha por não terem conseguido subjugar aquele “simples fio de cabelo”. Não existe ponte que possa transpor o abismo existente entre as doutrinas judaicas do livre arbítrio e da liberdade de escolha ética e dos dogmas cristãos do “pecado original e da “graça”. Abraço. Davi.

 

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