segunda-feira, 6 de maio de 2024

OS MILAGRES. PARTE I

 

Judaísmo. Livro Judaísmo e Cristianismo. As diferenças. Por Trude Weiss (1908-1989). Capítulo II. OS MILAGRAES. Parte I. No judaísmo, os milagres desempenham papel irrelevante. De fato, como foi enfatizado especialmente por Saádia Gaón (1882-1942), Maiomônide (1138-1204) e outros eminentes pensadores e mestres, a crença judaica na verdade da Revelação Divina no Sinai e a crença em Moisés como o mais perfeito profeta e mestre, não está baseada nem depende dos milagrosos eventos ligados à Torá e às maravilhas realizadas por Moisés. Já nas escrituras rabínicas dos primórdios encontramos a opinião de que os milagres bíblicos não foram ocorrências sobrenaturais, ou seja, contrárias às leis da natureza, mas incidentes que estavam perfeitamente dentro do seu âmbito divinamente determinado. De acordo com os mestres do Talmud e, aproximadamente quinze séculos mais tarde, de acordo com Baruc de Spinoza (1632-1677) e os filósofos deístas, a interferência divina nas leis da natureza parecia ilógica e incompatível com o esplendor e a grandeza de Deus. Eles, portanto, declaram ousadamente que Deus fez os preparativos para os milagres por ocasião da Criação. Assim respondendo a objeção impensáveis de que Deus interferiria nas leis da natureza depois de havê-las determinado. De acordo com esta tendência de remover o que há de miraculoso dos milagres, o Rabi Iochanan (30 a.C. – 90 d.C.) ensinou: “Deus fez um contrato com o Mar Vermelho segundo o qual ele deveria se dividir para os israelitas”. Seu colega Rabi Jeremias, filho de Elazar,  deu um passo adiante e observou que Deus fez um contrato similar, entre outros, com o sol e a lua para que parassem em suas trajetórias quando Josué ordenasse; os corvos, para alimentar Elias, com o fogo, para que não ferisse Ananias, Misael e Azarias. Com os leões para não ferir Daniel, com os céus para que se abrissem a Ezequiel e com o peixe para vomitar Jonas. Em consonância com esta tendência racionalista dentre os mais eminentes sábios, encontramos no Talmud uma enumeração de coisas milagrosas que foram criadas na véspera do Shabat da primeira semana do mundo e depois preservadas por Deus para serem reveladas em data designada do futuro. Dentre as coisas sobrenaturais que foram criadas, e consequentemente não realizadas devido a interferência com as leis da natureza, estava “a boca da terra” que se abriu para engolir Corá e seus seguidores. . “A boca do poço” que forneceu água aos israelitas no deserto, a boca do notável asno falante de Balam, o arco-íris, o maná, o bastão de Moisés e algumas outras coisas que os sábios consideraram milagrosas”.  Outro método de explicar os milagres bíblicos aperfeiçoado pelos pensadores, era encará-los como alegorias. Saádia Gaón, que conduziu esse sistema à vitória, não foi, entretanto, o primeiro a usá-lo. O Midrash já registra interpretações alegóricas dos milagres bíblicos que atestam a tendência racional dos sábios de épocas anteriores. Assim, por exemplo, o Rabi Neemias desejava explicar o milagre do Mar Vermelho como uma recompensa de Deus a fé do povo de Israel. Assim deduziu da passagem: “E o povo acreditou ... Êxodo 4,31”. Seu colega o Rabi Isaac, no entanto, insatisfeito com essa racionalização, discordou: “Eles viram todos os milagres que foram realizados para eles. Como, então, poderiam não acreditar?” Mas o Rabi Simão, filha de Aba, não se satisfez com esta explicação e apoiou a tentativa de alegorização do Rabi Nechemia, com a afirmação: “Foi realmente devido a fé de Abraão no Santíssimo (Deus) – bendito seja Ele – que eles tiveram, o privilégio de entoar um cântico no Mar Vermelho”. Mais surpreendente é a exposição da passagem bíblica em Êxodo 17,11 “E enquanto Moisés ficava com as mãos levantadas, Israel prevalecia, e quando, porém, abaixava as mãos, prevalecia Amalec”. Os rabinos observaram com ceticismo: “Poderiam, então, as mãos de Moises provocar a batalha ou interrompê-la?”, e decidiram que este gesto de Moisés tinha somente um significado simbólico; “pois enquanto os israelitas olhavam para cima e mantinham o coração submetido ao seu Pai do Céu, eles prevaleciam, quando não faziam, eram derrotados”. Essa notável interpretação é seguida pela não menos notável explicação sobre a “serpente abrasadora” como símbolo de alguém dirigindo os seus pensamentos para cima, já citado anteriormente. Esse tipo de interpretação bíblica, por meio de alegoria, foi aperfeiçoado por Saádia Gaón (882-942) e conduzido ao seu limite extremo por Maimônides e seus discípulos. Saádia chegou a ponto de declarar que a interpretação alegórica de passagens bíblicas conflitantes com a razão ou experiência se constituía num dever religioso, por se tratar de um ato de devoção: harmonizar as fontes religiosas com a verdade aceita. Segundo a mesma tendência racionalista, o Maimônides continuou afirmando que todos os eventos milagrosos associados à vida dos profetas eram parte de suas “visões proféticas”, contudo não ocorreram na realidade”. Ao caracterizar como “visões proféticas” virtualmente todos os eventos milagrosos registrados na Bíblia, ele arquitetou a manutenção da integridade racional do judaísmo. Foi dessa maneira que interpretou os encontros de Abraão e Jacó com anjos, a visão de Josué de um anjo e narrativas similares – não como eventos verdadeiros, mas como “visões proféticas”. O resultado desse tipo de exegese foi que o valor da Bíblia não era mais procurado naquelas narrativas envolvendo a crença em milagres, porém em seus ensinamentos éticos e “opiniões corretas”. Seria um erro, é claro, supor que não houve oposição aos racionalistas que reinterpretaram os milagres como alegorias e visões proféticas. Sempre existiram aqueles que sustentavam que a aceitação literal da Bíblia seria preferível e satisfaria mais a alma do que sua racionalização. Contudo, há provas abundantes que as melhores cabeças judias e os sábios mais destacados sempre se uniram em apoio a interpretação racionalista do judaísmo e de suas fontes. Ainda assim, os dissidentes que colocavam o coração acima da cabeça e a intuição acima do conhecimento razoável, também tiveram oportunidade de justificar e explicar suas posições. Como resultado, a literatura talmúdica e rabínica coloca lado a lado as ideias dos crentes ingênuos e as dos intelectuais racionalistas. Apesar disso, no Talmud – o registro fiel e virtualmente completo da vida judaica na sua totalidade durante aproximadamente mil anos – registrar as superstições, práticas e crenças correntes entre as pessoas comuns e entre os rabinos. O Talmud mostra que as melhores mentes entre os sábios se empenharam de modo consistente em minimizar o papel dos milagres como pilares da crença. Essa diferença de opinião com relação ao mérito religioso dos milagres é amplamente esclarecida por uma discussão entre o pouco conhecido Rabi José e o eminente Abaiê sobre o seguinte: “milagre”. Certa vez, uma mulher faleceu e deixou seu empobrecido marido com uma criança para cuidar. Ele não tinha dinheiro para contratar uma ama de leite para tomar conta do filho. Então, um milagre ocorreu: seus seios se abriram como os seios de uma mulher e ele pode amamentar a criança. A respeito dessa história, o Rabi José comentou: “Veja quão elevado era esse homem a ponto de um milagre como esse ter sido realizado para ele”. Mas Abaiê objetou: “Pelo contrário,  como era ruim esse homem a ponto de a ordem do mundo ter sido alterada por sua causa”. Podemos depreender disso que Abaiê, que viveu aproximadamente 16 séculos atrás, era profundamente moderno, no mínimo tão moderno quanto Espinoza e o filósofo Leibnitz (1646-1716). Pois depreciava a interferência sobrenatural nas leis da natureza e a via com algo perverso, em vez de exaltá-la como algo perverso, em vez de exaltá-la como milagre. Como resultado dessa atitude, o “realizador do milagre” foi visto com descrença e mesmo com certa suspeita por parte dos rabinos. Que essa foi a atitude, pelo menos dos sábios mais eminentes, é comprovado pelo fato de o Rabi Simão bem Shetach (120 a.C. – 40 a. C.) ter condenado Honi, o místico “desenhador de círculos”. Como merecedor de excomunhão, quando este produziu a chuva tão necessária por meio de orações mágicas. Os sábios mais eminentes afirmaram que os milagres não podem ser invocados para apoiar a verdade ou para provar a precisão de uma interpretação ou opinião. Há uma notável história talmúdica que relata como o Rabi Eliezer, que certa vez não conseguia convencer seus colegas da precisão de sua opinião, realizou vários milagres sem obter qualquer sucesso em convencê-los. Assim, quando uma alfarrobeira foi deslocada de seu lugar por cem metros como um testemunho miraculoso em apoio à opinião do Rabi Eliezer. Os outros rabinos contestaram: “Não se dá provas através de uma alfarrobeira”. O Rabi Eliezer então fez um curso de água fluir em sentido contrário, e as paredes da casa de estudos se inclinarem, e até uma voz celeste proclamou que ele estava certo. Mas os sábios não acreditaram em nenhum deles. E então o Rabi Jeremias ousadamente declarou, com um jogo de palavras de uma passagem do Pentateuco: “Ela, a Torá, não está no Céus ... Deuteronômio 30,12. A Torá nos foi outorgada no Sinai e, portanto, não levamos em consideração uma voz celestial”. Em outras palavras, os milagres são rejeitados como prova de veracidade e, mais especialmente, como confirmação de autenticidade de urna determinada interpretação da Torá. A bem da verdade, o desmerecimento do valor do milagre já foi claramente expresso no Pentateuco. O Deuteronômio adverte contra “um profeta, ou um intérprete de sonhos, que realiza milagres e te apresenta um sinal ou um prodígio, se este sinal ou prodígio que ele anunciou se realiza e ele te diz: “Vamos seguir outros deuses, que não conheceste, e servi-los, Deuteronômio 13,2. “Não ouças as palavras deste profeta é a exortação bíblica. Porque os milagres que ele realiza são, de acordo com o Pentateuco, apenas um instrumento por meio do qual “vosso Deus vos experimenta, para saber se de fato amais ao Eterno, nosso Deus. Com todo vosso coração e com todo vosso ser”. Pois eles não podem servir como provas da veracidade de algo que não é uma verdade. Dentro desse mesmo espírito Maimônides declarou que um milagre não pode provar o impossível, ou seja, algo que é inerentemente uma inverdade, pois ele “só serve para confirmar aquilo que é possível”. Uma vez que aos milagres se nega poder da prova e são considerados meramente uma confirmação secundária da verdade estabelecida, eles perdem virtualmente toda a sua importância. E isso é precisamente o que ocorreu no judaísmo. Desde a primeira e tímida desaprovação bíblica do valor dos milagres, como provam as ousadas afirmações dos sábios e, finalmente, a rejeição do sobrenatural pelos filósofos medievais, o judaísmo tem progressivamente desacreditado os milagres como sustentáculos da fé. Desta maneira, tanto Saádia Gaón quanto Maimônides puderam declarar que a crença judaica não é baseada em milagres. Mantendo essa convicção, Maimônides descreveu a Era Messiânica, advertindo os adeptos: “Não permita fazer parte de suas iideias que o Messias deve necessariamente realizar sinais e milagres, fazer algo sem precedentes ou reviver os mortos, ou algo similar”. A realização de milagres não é a credencial do Messias, mas sim, a realização das promessas proféticas de um mundo melhor, de justiça e retidão. Abraço. Davi.

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