Judaísmo. Livro Judaísmo e
Cristianismo – As Diferenças. Por Trude Rosmarin (1908-1989). Capítulo III.
LIVRE ARBÍTRIO X PECADO ORIGINAL. Parte I. A ética judaica está baseada na
crença da liberdade ética de ser humano e na possibilidade de escolher entre o
bem e o mal. Portanto, os filósofos judeus medievais, apoiados nos pronunciamentos
rabínicos e bíblicos, postularam que não haveria lugar para mandamentos e
proibições. Para recompensas e punições, se o ser humano não fosse livre para
escolher sua conduta. Fontes judaicas respeitadas enfatizam que todos os seres
humanos são dotados de liberdade na esfera ética e não são coagidos a seguir um
certo caminho: “Eis que hoje estou colocando diante de ti a vida e a
felicidade, a morte e a infelicidade (...) escolhe, pois, a vida, para que
vivas tu e tua descendência”.
Deuteronômio 30,15-19 é o lema perene da ética judaica. O reconhecimento
judaico característico da completa liberdade ética de modo mais contundente na
Eclesiástico de Ben Sirá (século II a.C.): Não diga “foi por causa do Eterno
que enfraqueci”, pois Ele não fará coisas que Ele abomina. Não diga: “Foi Ele
que me desviou do caminho”. Pois Ele não necessita de um pecador. O Eterno
abomina tudo que é abominável. E o deixou nas mãos de sua própria decisão. Se
desejares, podes cumprir os mandamentos, e agir com fé repousa em seu próprio
prazer. Estenda tua mão para qualquer coisa que deseje. Vida e morte estão
diante de um homem. E o que quer que escolha, será concedido! A certeza de que
o homem está “nas mãos de sua própria decisão” foi declarada com particular
insistência pelos sábios no Talmud, que ensinaram que “tudo está nas mãos de
Deus – exceto o temor a Deus”. Em outras palavras, Deus determina e guia a
sorte do ser humano, mas Ele não influencia ou interfere em sua conduta ética.
Essa posição também é reforçada na representação agádica do que ocorre nas
Alturas no momento da concepção de uma criança. O anjo Laila coloca a gota
seminal da qual o novo ser humano nascerá diante de Deus e pergunta: “Senhor do
universo, o que será desta gota? Deverá se desenvolver numa pessoa forte ou
fraca, sábia ou tola, rica ou pobre? Mas nada é dito sobre se ela será uma
pessoa iníqua ou justa. Ostensivamente, Deus, conduz somente o destino do ser
humano. Todavia não determina sua conduta, além de permitir a ele escolher
entre o bem e o mal. Os sábios consequentemente sustentam que o olho, a orelha
e as narinas podem ser controladas, contudo os órgãos são regulados por
músculos voluntários. Tais como a boca, as mãos e os pés, que estão sob o poder
do ser humano. Ouvimos, quer o desejo queira ou não, qualquer som que sejam
recebidos pelas orelhas. Mas a reação ao que ouvimos é determinada pela nossa
decisão, tomada com livre-arbítrio. Sendo que, todos os órgãos, pelos quais o
ser humano traduz suas intenções éticas e antiéticas em ações, são controladas
por músculos voluntários. Judá Halevi (século XII) declarou acertadamente,
portanto, que “o homem possui o poder de pecar ou se abster do pecado com
relação aquilo que estiver sob seu controle”. A convicção de que Deus controla
somente a sorte e o destino do ser humano, mas o deixa em total liberdade na
esfera ética, levou os sábios a estabelecerem o princípio de que “tudo é
previsto, mesmo assim o livre-arbítrio é concedido”. Então, “aquele que deseja
se corromper encontrará todos os portões abertos. E aquele que deseja se
purificar poderá assim fazê-lo, pois o homem é conduzido através da estrada que
deseja seguir”. Liberdade de decisão é a própria base de apoio da ética, pois
sem a tentação e a possibilidade – mas não a obrigação – de pecar, a piedade
não teria mérito. Uma vigorosa lição rabínica enfatiza que não devemos nos
esquecer da nossa capacidade de agir contrariamente aos mandamentos: “não se
deve dizer: Não posso comer carne de porco, não posso envolver-me numa relação
sexual proibida. Mas sim, deve-se dizer: Poderia, mas como posso fazer isso
contra o mandamento do meu Pai nos Céus? O “santo”, livre de estar a reboque da
tentação, definitivamente não é o protótipo da devoção judaica. Por outro lado,
entretanto, o judaísmo evitou fazer do ser humano alguém desamparadamente
sujeito à compulsão do pecado. A crença confessada do judaísmo é que “o Criador
não influencia as ações do homem”. Tudo depende do seu livre-arbítrio. Citando
o Nachmânides, Maimônides (1138-1204), “ele pode agir ou não agir”. Maimônides,
o grande mestre da arte de resumir, também fez um epítome admirável da postura
judaica aceita a respeito do livre-arbítrio: “O homem é congenitalmente dotado
de livre-arbítrio”. Declarou categoricamente: “Em vista disso, é razoável que a
Torá contenha mandamentos e proibições com proclamações oferecendo recompensa e
punição”. Além disso, “a doutrina do absoluto livre-arbítrio do homem é um dos
princípios fundamentais da Torá de nosso mestre Moisés e dos que a seguem. De
acordo com esse princípio, o homem faz aquilo que está a seu alcance fazer, de
acordo com sua natureza, escolha e vontade”. No entanto, uma vez que se aceite
que o ser humano é dotado de livre-arbítrio, admite-se que ele é responsável
por sua conduta correta e incorreta. E assim Maimônides resume o tradicional
ponto de vista: “O livre-arbítrio é concedido a cada ser humano. Se ele
pretende se acostumar à retidão e se tornar um justo, é livre para assim
fazê-lo. Se quiser seguir o mal e se tornar um perverso, é livre para assim
fazê-lo, conforme está escrito na Torá. “Veja, o homem se tornou um de nós,
conhece o bem e o mal” (...) Cada ser humano pode ser tornar justo como Moisés,
nosso Mestre, ou tão perverso quanto Jeroboão. Pode ser sábio, todo gentil ou
cruel, mesquinho ou generoso e com todas as outras qualidades acontece o mesmo.
Não há compulsão, força ou algo arrastando-o em qualquer direção, mas ele
próprio, por sua própria vontade e pensamento, segue o caminho que prefere
(...) E este é um princípio fundamental da nossa fé, um pilar da Torá e dos
mandamentos (...)”. Pois se Deus decretasse que o homem fosse bondoso ou
perverso ou houvesse algo em sua constituição básica compelindo-o para um dos
dois caminhos (...) como Ele poderia ter ordenado, através dos profetas, aja
assim ou não aja assim. Aperfeiçoe-se e não siga sua perversidade, se sua
conduta tivesse sido decretada na sua criação ou se sua constituição o forçasse
a algo contra o que não pudesse resistir? Que papel teria a Torá como um todo?
Ou por qual justiça e com que direito poderia Ele punir o perverso ou
recompensar o justo? Isso simplesmente nos compele a reconhecer a liberdade
ética como o próprio pressuposto e base da lei e da ética. Abraço. Davi
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