segunda-feira, 2 de junho de 2025

A RENÚNCIA

Budismo. O Evangelho de Buda. Vida e Doutrina de Sidarta Gautama. Por Yogi Kharishnanda. 4. A RENÚNCIA. Certa noite, o príncipe estava repousando quando repentinamente levantou-se foi ao jardim. Ah! exclamou: O mundo está cheio de trevas e ignorância. Ninguém sabe como curar os males da existência. E suspirou dolorosamente. Yasodhara atirou-se aos seus pés, suspirando aflita e dizendo: Meu Senhor não encontra a felicidade em mim? Sidarta respondeu: Ah, querida esposa! Sinto a alma dilacerada ao pensar que essa felicidade terá fim e envelheceremos sem amor, repulsivo, débeis, encurvados. Sim, ainda que os nossos lábios tenham sido tão fortes selos da vida e do amor, que noites e dias fosse um só o nosso alento, e se interrompesse entre ambos o tempo para arrebatar minha paixão e sua beleza. Como a negra noite apaga os rosados raios que brilham no cume dos montes e os cobres com seu sombrio sendal. Eis o que descobri. Meu coração estremeceu de espanto a essa ideia, e todo o meu ser só pensa em resguardar o amor dos ataques do tempo implacável que envelhece os homens. Toda aquela noite o príncipe passou inconsolável e insone. No dia seguinte pediu a seu pai que o deixasse ver a cidade tal qual era, sem os enfeites nem os preparativos de uma festa ilusória. Na vida costumeira dos homens que não são reis. O rei Suddhodana concordou, e na hora em que o sol passa pelo meridiano, Sidarta saiu disfarçado de mercador. Juntamente com o cocheiro Channa com hábito de religioso, caminharam a pé pelas ruas, confundidos entre os cidadãos, olhando tudo quanto de alegre e triste existia na cidade. Ao chegarem ao rio, uma comitiva de pessoas tristes e chorosas que se aproximavam da margem a passos apressados. A frente ia um homem agitando uma taça de barro cheia de brasas. Seguiam-no os parentes malvestido e com a cabeça coberta de luto. Depois vinha o féretro composto de quatro varas com um leito de pedaços de bambus entrelaçados, onde jazia um cadáver rígido. Emagrecido com os pés para a frente, a boca cerrada, os olhos vidrados, as mãos crispadas, coberto de um pó vermelho e amarelo. Os que o carregavam conduziram o féretro até a margem do rio, onde estava disposta uma pira sobre a qual o colocaram, cobrindo-os com folhas secas. Em seguida, atearam fogo nos quatro lados. A chama brotou subitamente, lambendo a pira e, com suas sibilantes línguas de fogo, devorou o cadáver. A pele dessecada rasgou-se e as articulações se desprenderam. Por fim clareou a fumaça da gordura e as cinzas caíram pardas e vermelhas, com pó de ossos brancos que salpicaram a cor das cinzas. Era tudo quanto restava do homem. O príncipe disse: Este é o fim de todos os viventes? Channa respondeu-lhe: Este é o fim de todos. Aqueles que o senhor viu na pira e cujos restos são tão desprezíveis que os corvos grasnantes desdenhariam como fútil manjar. Já comeu, bebeu, riu, amou e considerou a vida grata e prazenteira. Porém, o que sobrevém depois? Quem o sabe? Um violento sopro de ar da selva, um tropeço no caminho, algo sujo na cisterna. A picada de uma cobra, um resfriado, a espinha de um peixe, a queda de uma telha, a vida escapa e os homens morrem. Já não tem apetites, nem prazer nem dores. Nada significa para ele um beijo na boca nem uma queimadura nos lábios. Não sente o mau cheiro da sua carne tostada, nem o perfume do sândalo, nem os aromas que ardem na pira. Sua boca perdeu o paladar, seus ouvidos não ouvem e seus olhos não veem. Desolados, gemem aqueles que ele amava, porque também é preferível destruir o corpo que era a lâmpada da vida, do que oferecer um festim horrendo aos corvos. Esse é o destino comum de toda carne. Altos e baixos, bons e maus, têm que morrer, e segundo nos ensinam, renascem depois para uma nova vida ... onde? Como? Quem sabe? E outra vez as angústias, a morte e as chamas da pira. Esse é o destino do homem. Sidarta levantou pra o céu os olhos em que brilhavam lágrimas divinas, e em seguida baixou-os ao chão, inundados de celeste piedade. Contemplava alternativamente o céu e a terra, como se em voo solitário seu espírito buscasse alguma visão longínqua que unisse o céu e a terra. Depois, ansiosamente, inflamado pela ardorosa paixão de um amor inefável, de uma infinita e insaciável esperança, exclamou Oh, triste mundo! Oh, os seres de minha carne, conhecidos e desconhecidos, presos nesta rede comum de mortes, vida e dores que a todos nos atam! Vejo e sinto a imensa agonia do mundo, a vaidade dos seus prazeres, ilusão de sua felicidade, a angústia de seu infortúnio. A dor substituir o prazer, a velhice a juventude, a perda do ser amado o amor, a odiosa morte a vida. A morte em vidas desconhecidas que de novo atam os homens à sua roda para girar em círculo de deleites ilusórios e sofrimentos reais. A mim também me alucinou este sonho, e parecia-me agradável viver a vida como um regato luminoso que flui sem cessar em paz inalterável. Cujo buliçoso caudal desliza ligeiramente pelos floridos prados para jorrar mais apressando suas águas no mar impuro. Caiu o véu que me cegava! Sou como esses homens que em vão imploram aos deuses que não os ouvem. No entanto, algum auxílio há de existir pra eles e para mim, e para todos os que necessitarem de ajuda. Será que os deuses também estão precisando de auxílio? São tão fracos que não podem salvar os que os invocam com tristeza nos lábios? Não deixarei chorar os que puder salvar! Como é possível que Brahma criasse o mundo pra abandoná-lo na miséria? Se é onipotente e o deixa miserável, não é bondoso, e se não é onipotente, não é Deus. Sidarta sentou-se sob a frondosa arvore bo, chamada também azvattha, ou banano, e entregou aos seus pensamentos, meditando sobre a vida e a morte, os males e a decrepitude. Concentrando o seu espírito, libertou-se de toda confusão. Todos os vis desejos desapareceram do seu coração e uma calma perfeita o inundou completamente. Nesse estado de êxtase, viu com seu olho mental toda a miséria e dor existentes no mundo. Viu as dores causadas pelo prazer e a inevitável certeza da morte que pesa sobre todos os seres. No entanto, os homens não despertaram ainda para a verdade. E uma profunda compaixão invadiu a sua alma. Enquanto meditava sobre o problema do mal, o príncipe viu com o olho seu espírito, sob as árvores, uma venerável figura revestida de majestade, calma e dignidade. Perguntou-lhe: De onde vem o senhor? Quem é? A visão lhe respondeu: Sou um samana. Atormentado pelos pensamentos sobre a velhice, a enfermidade e a morte, fui de lugar em lugar para buscar o caminho da salvação. Todas as coisas se precipitam para a ruína, só a Verdade é eterna. Tudo muda e nada dura, unicamente as palavras dos Budas são imutáveis. Eu aspiro à felicidade inalterável, ao tesouro imperecedouro, à vida sem princípio nem fim. Por isso, destruí todo pensamento mundano e retirei-me para o deserto pra viver em solidão e mendigar o meu sustento, e assim me consagrei à única coisa necessária. Sidarta perguntou-lhe: E como pode alguém obter a paz neste mundo agitado? Já transpus a vaidade e o prazer e tenho horror à sensualidade. Tudo me entristece e a própria vida se tornou intolerável pra mim. O samana lhe respondeu: Onde há calor também pode haver frio. Os seres sujeitos à dor possuem a faculdade de sentir prazer. A origem do mal ensina que pode existir o bem. Porque essas coisas são correlatas. Assim, onde há muita desgraça, haverá muita felicidade, contanto que os olhos se abram para vê-la. Da mesma maneira que aquele que cai na lama procura um lago de lótus pra limpar-se, também o pecador busca o grande lago imortal do nirvana para se limpar do pecado. Se o que está sujo de lama não busca o lago, isso não quer dizer que o lago não exista. Assim, também, quando existe um caminho santo que conduz ao nirvana, e o homem sujeito ao pecado não a busca, a falta não está no caminho e sim no pecador. Se um enfermo não chama o médico que pode curá-lo, se ele morrer a culpa não será do médico e sim do enfermo. Do mesmo modo, se o enfermo da alma não busca o guia espiritual da luz, se o doente da alma continua enfermo a culpa não será do guia. O príncipe escutou as nobres palavras do seu visitante e lhe respondeu: O senhor é mensageiro de boas-novas, contudo não sei se cumprirei meu propósito. Meu pai me incita a desfrutar a vida e a sujeitar-me aos deveres mundanos que me dão nobreza e enaltecem minha casa. Disse que sou muito jovem e que meu coração ainda palpita por demais fortemente para me entregar à vida religiosa. A veneração aparição moveu a cabeça em sinal de discordância e respondeu: Jamais houve tempo e falta de tempo pra buscar a verdadeira religião. Com o coração palpitando de alegria, Sidarta disse: Este é o momento de buscar a verdadeira religião. É o instante propício para romper os laços que me impedem de alcançar a perfeita iluminação. Esta é a hora de aceitar a vida mendicante e de encontrar a senda da libertação. O mensageiro celeste, satisfeito com a resolução de Sidarta, disse-lhe: De fato, esta é a oportunidade que você depara para encontrar a verdadeira religião. Vá e cumpra o seu propósito, porque você é o Buda escolhido e destinado a iluminar o mundo. Você é o perfeito Tathágata, porque cumprirá toda justiça e será o verdadeiro rei do Dharma. Você é Bhagavad, o Bendito, porque há de ser salvador do mundo. Vá e cumpra a perfeição da verdade. Mesmo que sobre a sua cabeça caia o raio, não ceda jamais à ilusão que desvia o homem do caminho da Verdade. Assim como o Sol não se detém em nenhuma das quatro estações do ano. Não se afaste do caminho da justiça. Você será Buda. Persevere em seu caminho e encontrará o que está buscando. Prossiga até o fim sem se desviar, e alcançará o prêmio. Combata com coragem e vencerá. Que a benção dos deuses, dos santos de todos os que buscam a luz seja consigo, e que a celeste sabedoria guie seus passos. Você será o Buda nosso Amo e Senhor. iluminará o mundo e salvará a humanidade da perdição. Dito isso, a visão celeste desapareceu e a alma de Sidarta ficou em paz. Abraço. Davi


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