Budismo. www.bodisatva.com.br. O ÚNICO ANTÍDOTO É
A SABEDORIA. Na tarde do dia 15 de setembro de 2011, Sua Santidade o Dalai Lama
ofereceu ensinamentos em São Paulo, Brasil. Sua fala apresenta um panorama
histórico das diferentes tradições filosóficas budistas e nos brinda com o
elixir da mais pura sabedoria, o antídoto último de todos os males. Hoje, 9 de
abril de 2020, resgatamos esta preciosidade do nosso acervo com a aspiração de que
a raiz de todo o sofrimento seja diretamente erradicada. Todas as grandes religiões
do mundo – apesar das várias diferenças filosóficas – veiculam uma mesma
mensagem: de amor, compaixão, perdão, autodisciplina, justiça e honestidade.
Todas falam sobre esses valores e, mais importante, todas oferecem instrumentos
para podermos cultivá-los com o objetivo de criar uma comunidade humana
saudável e feliz. Dentro dessas tradições, encontramos dois grandes grupos: de
um lado, as religiões teístas e, de outro, as não teístas. Na categoria das não
teístas há uma subdivisão: as religiões que acreditam na existência de um eu
independente e aquelas que não acreditam na existência de um eu independente. O budismo se insere na categoria das religiões não teístas
e é uma religião que não postula a existência de um eu independente. Antes, o
budismo fala sobre a lei da causalidade. Essa ausência de crença em um eu
independente é um conceito único do budismo. O budismo vai falar naquilo que se costuma chamar de “originação interdependente”, que em sânscrito é pratityasamutpada. No budismo, encontramos duas tradições: a páli e a
sânscrita. A tradição páli constitui a base – ela consegue se manter por si só,
é completa; a tradição sânscrita, diferentemente, depende da tradição páli. A
tradição páli é o alicerce sobre o qual se assenta a tradição sânscrita. Mas a
tradição que vem do sânscrito contém as explicações mais sofisticadas e mais
profundas que o budismo tem a oferecer. De acordo com o
conceito budista da interdependência – a lei da causalidade –, todos os
fenômenos estão se transformando a cada segundo, todos ocorrem a partir de suas
próprias causas e condições; então todo resultado depende inteiramente de suas
causas e condições. Essa é a primeira maneira de se entender a
interdependência. Dentro da tradição sânscrita, nós encontramos duas escolas de
pensamento: a escola Cittamatra e
a escola Madhyamika. Os
entendimentos da escola Madhyamika, a meu ver, são os mais profundos. Na escola
Madhyamika se diz que não apenas o resultado depende da causa, mas a causa
também é totalmente dependente do resultado; para que uma causa possa ser causa
ela vai depender do resultado. Em Madhyamika, também existe uma outra distinção
do conceito de interdependência, que é a ligação entre a parte e o todo, entre
o átomo e o todo: a existência de uma pessoa, por exemplo, é totalmente
definida a partir dos agregados físicos dela; não existe uma noção de pessoa
que se assente no conjunto dos agregados. Este é o postulado da falta de
existência intrínseca do eu. Nós encontramos este postulado nas quatro escolas
budistas: Vaibhashika, Sautrantika, Cittamatra e Madhyamika. No budismo, não só as pessoas, mas também os
fenômenos são desprovidos de existência intrínseca. Se nós olharmos os cinco
agregados que formam a base que designa, por exemplo, uma pessoa – se
examinarmos os agregados que a compõem – vamos ver que eles também, por sua
vez, dependem de suas partes. Isso vale não só para os agregados físicos que
existem no mundo grosseiro observado, mas também para as essências a partir das
quais esses cinco agregados físicos provêm. Essas essências também são
desprovidas de existência intrínseca. Isso vale tanto para o nível mais
grosseiro quanto para o nível mais sutil; se nós olharmos coisas mais etéreas,
como o espaço, veremos que elas são desprovidas de existência intrínseca,
também são dependentes de seus componentes. Isso é válido não só para o mundo
externo que é observado, mas se aplica também à própria mente que observa os
fenômenos – ela também não tem existência intrínseca. É dessa maneira que se
descreve a falta de existência intrínseca dos fenômenos. Dentro da tradição sânscrita, encontramos dois
tipos de vacuidade quando falamos dos seres sencientes: existe a vacuidade do
eu e existe a vacuidade da base do eu. As diferentes escolas budistas, como
Cittamatra e Madhyamika, têm conceitos e postulados diferentes sobre a
vacuidade, ou shunyata. Mas para que desenvolvermos todas essas
complicações filosóficas? É que a causa última do sofrimento é a ignorância, e
quando falamos de ignorância, falamos de dois tipos. O primeiro é o que
chamamos de “mera ignorância”: por exemplo, uma criança antes de ir à escola,
onde alguém lhe ensina o alfabeto, não conhece o alfabeto; essa ignorância é
uma falta de conhecimento. O segundo tipo de ignorância é uma percepção ou uma
apreensão errônea da realidade: alguém olhar a letra A e achar que é B, olhar B
e achar que é C. A remoção completa da
ignorância só acontece quando se chega ao estado búdico. No budismo, diz-se que
a apreensão errônea da realidade é a causa última do sofrimento. Sendo assim, qual seria o antídoto que poderia se
contrapor a essa causa? Não é a oração, também não é a mera meditação, tampouco
bodicita – ela não pode ter essa função, nem a compaixão infinita pode
erradicar essa concepção errônea da realidade. A única coisa que pode
desempenhar esse papel é a sabedoria. Através da sabedoria você pode ir se familiarizando
mais e mais com a realidade até, por fim, passar a entendê-la. E quando você,
de fato, entende plenamente a realidade em sua instância última, isso erradica
a ignorância e, por conseguinte, o sofrimento. De modo geral,
nós temos uma apreensão incorreta da realidade: se eu olho para vocês e vocês
olham para mim, vocês podem estar me vendo como um ser absoluto, independente
de vocês; eu sou o Dalai Lama e você é você. Mas essa é uma compreensão
incorreta: não existe nada que seja independente de um modo absoluto; todas as
coisas são interdependentes e, a partir dessa concepção errônea da realidade,
surge a base do apego, a base de todas as emoções negativas. Quanto às emoções
positivas, elas podem ser cultivadas a partir de um treinamento. Se você
pratica o amor e a bondade, isso reduz as emoções negativas, como a inveja ou a
raiva. Em termos últimos, o que vai
erradicar as emoções negativas é a sabedoria, é você se familiarizar com o que,
de fato, é a realidade em sua instância última. Assim você entenderá que as
coisas aparecem aos nossos olhos como absolutas e independentes, mas que isso é
apenas uma miragem. Quando você verdadeiramente compreende isso, essa é a base
a partir da qual as emoções destrutivas podem ser dissipadas. Na tradição sânscrita se diz
que o Buda girou a roda do Darma três vezes: no primeiro giro, ele falou sobre
a base do budismo – as quatro nobres verdades. No segundo, o Buda deu
explicações adicionais sobre a terceira nobre verdade, que é a possibilidade da
cessação, baseada no conceito das duas verdades: a verdade convencional e a
verdade última. No terceiro giro, ele ofereceu ensinamentos mais elaborados
sobre a quarta nobre verdade, que é a possibilidade da eliminação de todas as
emoções destrutivas, e isso é possível porque, no nível mais sutil, a natureza
da mente é clara como a luz. A natureza da água é limpa e
pura, mas muitas vezes quando ela se mistura com o barro ou outra substância,
ela fica turva. Porém, por mais suja que possa estar, a sua natureza essencial
é límpida. Isso vale para a nossa mente: por mais turva que a nossa mente possa
estar pelas emoções destrutivas, no nível da realidade última ela é límpida, e
por isso essa separação se torna possível. As emoções destrutivas nos divorciam
da realidade. A sabedoria pode gerar a compreensão da realidade última, e esse
é o antídoto. Por mais potentes que sejam as emoções destrutivas, por mais
sobrecarregada de negatividades que esteja uma mente, essas negatividades podem
ser limpas absolutamente, pois elas não são a natureza última. Embora tibetano, tenho uma conexão direta com a
tradição da Universidade de Nalanda.
Isso porque, no Tibete, o ensino foi introduzido por um grande mestre chamado
Shantarakshita, um grande erudito que dava ensinamentos nessa instituição. Ele
chegou ao Tibete no século VIII a convite do Imperador. Como era monge, ele
introduziu a tradição monástica no Tibete. Mas ele também era um grande
filósofo, um grande erudito, então introduziu também ensinamentos de
Madhyamika, de lógica, de epistemologia. Shantarakshita deu ensinamentos tão
profundos e completos que até os dias de hoje esses textos são estudados. Também veio ao Tibete um grande mestre tântrico
chamado Padmasambava. Assim, podemos dizer que o budismo tibetano é completo:
ele inclui a tradição dos sutras que vem do páli, toda a versão que vem do
sânscrito e toda a versão tântrica. É importante enfatizar essa raiz do
budismo, proveniente da Universidade de Nalanda. Na tradição tibetana,
encontramos basicamente 300 volumes de textos, sendo que 100 contêm as palavras
do próprio Buda, e os demais são comentários sobre as palavras do Buda. É muito
importante que esses textos sejam estudados – não devem ser tomados apenas como
objetos de veneração para se colocar sobre o altar e aos quais dirigir orações.
Para que possam ser de fato eficazes, precisam ser usados, estudados. Ao longo da implantação do budismo no Tibete, em
diferentes regiões, diferentes ensinamentos foram criados e diferentes nomes
foram dados às escolas que cultivavam esses ensinamentos. Foi assim que
apareceu a seita dos chapéus vermelhos e dos chapéus amarelos – fico com
vontade de criar uma nova seita, a dos chapéus verdes! – mas isso não é
importante. O importante é que todas têm uma raiz comum, essa nobre tradição da
Universidade de Nalanda. Por vezes, em decorrência dessas diferentes seitas,
também se desenvolveu o sectarismo no Tibete – as pessoas se apegavam à sua
própria seita. Mas também no Tibete se
desenvolveu um movimento muito importante de não sectarismo, e um grande mestre
dessa tradição é Jamyang Khyentse Wangpo. Eu cultivo, estudo e prezo as
tradições não sectárias do budismo tibetano. Os Dalai Lamas pertencem à seita dos chapéus
amarelos mas, ao longo da história, muitos Dalai Lamas – inclusive o atual –
receberam ensinamentos das diferentes escolas do budismo tibetano: dos Sakyas,
dos Nyingmas, dos Kagyus. Isso ajuda muito. Não faz muito sentido ficar apegado
apenas à sua tradição, pois isso limita o conhecimento. Por outro lado, se você
se coloca aberto para receber os ensinamentos das diferentes tradições, isso o
fortalece. www.bodisatva.com.br.
Abraço. Davi.
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